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A herança digital chega ao STJ: senhas, privacidade e o novo papel do inventariante digital

Decisão do STJ inaugura o reconhecimento jurídico da herança digital no Brasil, estabelece procedimento próprio para acesso a contas protegidas por senha e introduz a figura do inventariante digital. Por Calza Neto

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) acaba de firmar um precedente histórico sobre um tema cada vez mais presente na vida moderna: a herança digital. Em decisão proferida pela Terceira Turma em 1º de outubro de 2025, a Corte definiu que o acesso a bens digitais protegidos por senha exige a abertura de um incidente processual próprio, a ser instaurado paralelamente ao inventário tradicional.

A decisão inaugura um novo capítulo na forma como o Judiciário brasileiro encara o destino de bens e dados digitais de pessoas falecidas, um território até então marcado por lacunas legais e dilemas éticos.

O caso que levou o tema ao STJ

O processo teve origem em um pedido de herdeiros que buscavam o desbloqueio de aparelhos eletrônicos pertencentes ao falecido, os quais continham informações patrimoniais e pessoais relevantes. Sem as senhas, eles solicitaram à Justiça autorização para acesso direto junto à empresa fabricante dos dispositivos.

A Terceira Turma do STJ, no entanto, entendeu que a abertura indiscriminada de tais aparelhos poderia violar direitos de personalidade, intimidade e sigilo de comunicações, não apenas do falecido, mas também de terceiros que interagiam com ele. Por isso, determinou que o acesso ocorra mediante incidente processual autônomo, conduzido pelo juiz do inventário, com apoio de um profissional técnico especializado — o inventariante digital.

O que significa “incidente processual próprio”

Na prática, o tribunal criou um procedimento específico dentro do processo de inventário para tratar exclusivamente dos bens digitais. Esse incidente servirá para:

1. Identificar e classificar os bens digitais (contas, arquivos, ativos criptográficos, documentos em nuvem etc.);

2. Avaliar o valor patrimonial e a relevância jurídica de cada item;

3. Delimitar o que pode ser acessado sem violar direitos de personalidade ou intimidade;

4. Preservar a cadeia de custódia e a integridade das provas digitais.

Trata-se de uma medida que concilia o direito sucessório , que garante aos herdeiros acesso ao patrimônio, com a proteção de dados e da privacidade, princípios consagrados tanto na Constituição quanto na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A era do inventariante digital

Com essa decisão, surge uma nova figura jurídica: o inventariante digital. Ele não substitui o inventariante tradicional, mas atua em conjunto com ele, com formação técnica para lidar com a coleta, análise e preservação de dados digitais.

Entre suas funções estão:

  • Realizar o mapeamento dos ativos digitais;
  • Garantir que o acesso ocorra com segurança e rastreabilidade;
  • Evitar a exposição indevida de dados pessoais;
  • Elaborar relatórios técnicos para subsidiar decisões judiciais.

Essa função deve ser exercida por profissional com conhecimentos em direito digital, perícia forense e proteção de dados, reforçando a interdisciplinaridade entre o jurídico e o tecnológico.

Um equilíbrio delicado: herança versus privacidade

A decisão do STJ reconhece que nem todo dado digital é transmissível. Há uma distinção clara entre:

  •  Bens digitais patrimoniais, como criptomoedas, royalties, direitos autorais e contas de monetização — que integram o espólio e podem ser transmitidos;
  • E bens digitais personalíssimos, como mensagens, e-mails e fotografias íntimas — que, por natureza, não devem ser acessados sem critérios rigorosos.

Assim, o tribunal evita a banalização da herança digital e protege a memória e a dignidade do falecido, além de terceiros envolvidos nas comunicações eletrônicas.

A lacuna legislativa e a necessidade de regulação

O Brasil ainda não possui uma lei específica sobre a sucessão de bens digitais. A decisão do STJ, portanto, supre parcialmente uma lacuna normativa, estabelecendo parâmetros práticos para o Judiciário.

Enquanto países como os Estados Unidos e a França já possuem legislações específicas como o Fiduciary Access to Digital Assets Act, por aqui ainda dependemos da analogia e da criatividade judicial.

A tendência é que o Congresso Nacional avance em um projeto de lei que discipline:

  • o conceito de bens digitais;
  • a transmissibilidade de dados;
  • o procedimento do incidente digital;
  • e a figura do inventariante digital.

LGPD e o pós-morte digital

A LGPD não trata expressamente do tratamento de dados pessoais de pessoas falecidas. Contudo, seus princípios — como finalidade, necessidade e segurança — devem orientar o acesso a informações digitais em processos sucessórios.

Em outras palavras, a morte não encerra o dever de proteger dados pessoais, principalmente quando envolvem comunicações de terceiros, segredos profissionais ou informações sensíveis.

O futuro da sucessão digital

A decisão da Terceira Turma é mais do que uma resposta a um caso concreto — é um sinal de maturidade do sistema jurídico brasileiro diante da vida digital. Ela inaugura uma nova etapa: o reconhecimento de que a identidade, o patrimônio e a memória das pessoas hoje também vivem em servidores, nuvens e redes sociais.

Planejar o futuro agora envolve não apenas testamentos tradicionais, mas também testamentos digitais, com instruções claras sobre o destino de contas, senhas e perfis online.

Conclusão

A decisão do STJ equilibra o direito dos herdeiros com a proteção da privacidade, cria um procedimento inovador e reforça a importância da especialização técnica no tratamento de dados digitais.

Mais do que uma questão jurídica, trata-se de uma reflexão ética sobre como lidamos com a continuidade da existência humana no mundo virtual, onde a memória, o afeto e o patrimônio se misturam.

Em tempos de transformação digital, o inventário do futuro será também um inventário de dados.

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