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SMART TVS E PROTEÇÃO DE DADOS: O PERIGO INVISÍVEL DO RECONHECIMENTO AUTOMÁTICO DE CONTEÚDO.

Por Calza Neto

Vivemos em um tempo em que a conectividade doméstica é sinônimo de praticidade e entretenimento. Smart TVs, assistentes virtuais, câmeras de segurança e eletrodomésticos inteligentes já fazem parte da rotina de milhões de brasileiros. No entanto, com a comodidade vêm também novos riscos, muitas vezes invisíveis, à privacidade dos usuários. Um desses riscos atende pela sigla ACR: Automatic Content Recognition ou Reconhecimento Automático de Conteúdo.

Mas o que é o ACR? O ACR é uma tecnologia embutida em muitos modelos de Smart TVs e funciona como uma espécie de “olho eletrônico” que analisa e identifica o conteúdo exibido na tela. Independentemente de o programa estar sendo assistido via streaming, TV aberta, HDMI ou mesmo em DVDs, o sistema detecta, reconhece e envia informações sobre o que foi reproduzido para os servidores da fabricante ou de empresas terceirizadas.

A proposta, segundo os fabricantes, é aprimorar a experiência do usuário, oferecendo sugestões personalizadas de conteúdo, anúncios mais relevantes e até melhorias na qualidade de imagem. Porém, na prática, isso também significa que a TV está constantemente monitorando o que você assiste, e, em alguns casos, até ouvindo o ambiente onde está instalada.

Privacidade em xeque

Ao contrário dos smartphones, que demandam permissões explícitas para o uso do microfone ou da câmera, muitas Smart TVs habilitam o ACR por padrão no momento da configuração inicial, sem que o usuário perceba claramente o alcance dessa função. O que está em jogo não é apenas o hábito de consumo de mídia, mas a construção de perfis comportamentais com base em dados sensíveis, como preferências culturais, opiniões políticas e rotinas familiares.

Isso levanta questões sérias sob a ótica da proteção de dados pessoais, especialmente à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabelece princípios como a necessidade, a transparência e a finalidade para qualquer coleta de dados. Informações geradas a partir da identificação do conteúdo assistido podem, sim, ser consideradas dados pessoais quando vinculadas ou vinculáveis ao usuário.

O que diz a legislação?

Trata-se de uma tecnologia embarcada em muitas marcas de televisores inteligentes, que identifica automaticamente o conteúdo exibido na tela, independentemente de sua origem, seja streaming, TV a cabo, HDMI, pendrive ou outra fonte —, e envia essas informações para os servidores da fabricante ou de empresas parceiras. O objetivo declarado é aprimorar a experiência do usuário, oferecendo sugestões personalizadas e anúncios mais relevantes. Contudo, o que está em jogo é a coleta massiva de dados sobre hábitos de consumo, horários de uso e, em alguns casos, até o ambiente sonoro da residência.

Embora muitas pessoas ainda vejam sua TV apenas como um reprodutor de imagens, esses dispositivos conectados são verdadeiras ferramentas de coleta de dados, muitas vezes ativadas por padrão na configuração inicial e operando de forma silenciosa. Isso acende um alerta importante à luz da legislação brasileira, sobretudo da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), do Marco Civil da Internet e do Código de Defesa do Consumidor.

A LGPD (Lei nº 13.709/2018) define como dado pessoal qualquer informação que identifique ou possa identificar uma pessoa natural. Informações como o que você assiste, em que horários e com que frequência podem, quando agregadas, traçar perfis comportamentais detalhados, o que, portanto, enquadra-se na definição legal de dado pessoal. O tratamento desses dados exige base legal clara, como o consentimento livre, informado e inequívoco, ou outra base legítima prevista em lei. Além disso, o tratamento deve observar princípios como a necessidade, a finalidade e a transparência. A ativação do ACR sem uma opção clara e destacada de recusa pode violar esses princípios e configurar tratamento indevido.

O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), por sua vez, reforça a exigência de consentimento expresso para a coleta e uso de dados pessoais pelos provedores de conexão e aplicações. Seus artigos 7º e 10º deixam claro que os usuários devem ser informados sobre a finalidade da coleta, e que os dados só podem ser tratados com autorização do titular. Assim, a operação do ACR sem transparência ou sem que o consumidor compreenda suas implicações pode contrariar o próprio espírito da norma, que busca assegurar a privacidade e a liberdade dos usuários na rede.

Já o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) garante o direito à informação adequada e clara sobre produtos e serviços. O artigo 6º, inciso III, e o artigo 39, inciso IV, vedam práticas abusivas e omissões que prejudiquem o consumidor. Quando o recurso de reconhecimento de conteúdo é ocultado em configurações técnicas ou mencionado apenas em letras miúdas nos termos de uso, há violação do dever de transparência e da boa-fé objetiva.

Do ponto de vista jurídico, as empresas que coletam dados por meio do ACR sem observar essas obrigações podem ser responsabilizadas. A LGPD prevê sanções administrativas aplicadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que vão de advertências ao bloqueio de dados e multas que podem chegar a 2% do faturamento da empresa, limitadas a R$ 50 milhões por infração. Além disso, há possibilidade de responsabilização civil por danos morais e materiais, caso seja demonstrado prejuízo ao titular em decorrência da prática.

Para se proteger, o consumidor deve acessar o menu de configurações da Smart TV, localizar as opções de privacidade ou coleta de dados e desativar o ACR. Os nomes do recurso variam entre os fabricantes, podem aparecer como “reconhecimento de conteúdo”, “visualização inteligente” ou “coleta de dados para aprimoramento” —, mas todos têm a mesma função: monitorar o que é assistido. Também é importante manter o software da TV atualizado, ler as políticas de privacidade e desconfiar de funcionalidades ativadas automaticamente sem explicação clara.

Considerações finais

A promessa de um lar inteligente e conectado encanta pela conveniência, mas não pode obscurecer os riscos invisíveis que essa evolução tecnológica carrega. Em uma era em que os dados pessoais se tornaram ativos estratégicos, compreender como o ACR opera, e quais são suas implicações jurídicas e práticas, é essencial para que o cidadão preserve sua autonomia informacional e exerça seus direitos com consciência.

Afinal, quando sua televisão começa a saber mais sobre seus hábitos do que você mesmo percebe, talvez seja o momento de refletir quem, de fato, está com o controle na mão.

 

 

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