O Direito de Imagem na Era das Deepfakes: entre a verdade e a ilusão
Por Fernanda Nogueira

Imagine assistir a um vídeo em que você aparece dizendo algo que jamais disse, em um local onde nunca esteve. A imagem é sua, os trejeitos são seus e a voz também. Mas a cena é uma farsa. Essa é a realidade distópica criada pelas deepfakes, tecnologias de inteligência artificial que simulam com realismo assustador o rosto, a voz e os gestos de qualquer pessoa.
Neste contexto, o Direito de Imagem – tradicionalmente associado à proteção da personalidade – se vê diante de um novo paradigma. As deepfakes não apenas desafiam os limites da veracidade, mas também ameaçam a dignidade, a reputação e a autonomia individual.
O direito à imagem é um direito da personalidade, previsto no art. 5º, X, da Constituição Federal, e no art. 20 do Código Civil. Ele assegura a inviolabilidade da representação física e sensível da pessoa, abarcando não apenas a figura estática, mas também atributos dinâmicos como voz, expressões faciais, trejeitos e outros elementos identitários.
As deepfakes são produtos da IA generativa, baseadas em redes neurais que combinam múltiplas fontes de dados para simular a realidade. Elas têm sido usadas em contextos diversos: de entretenimento e publicidade à desinformação política e pornografia de vingança.
Embora o ordenamento jurídico brasileiro reconheça a proteção da imagem e da honra, ele ainda é insuficiente para lidar com as especificidades das manipulações digitais. A LGPD, o Marco Civil da Internet, a Lei Carolina Dieckmann e os artigos do Código Penal são fragmentados e carecem de uma normatização unificada.
Casos emblemáticos como o do ex-governador João Doria, ligado a um vídeo falso às vésperas da eleição, e o deepfake de Barack Obama em contexto político demonstram como a manipulação pode ser utilizada como arma de destruição reputacional.
A imagem está diretamente ligada à identidade. Partindo do pressuposto de que o modo como somos vistos pelos outros constitui parte do que somos, as manipulações digitais não consentidas afrontam a autonomia e a dignidade da pessoa humana.
Mais do que consentimento para reprodução de conteúdos, a nova realidade exige consentimento para criação. Um deepfake que retrata alguém em situações falsas pode violar a imagem-atributo mesmo sem conter palavras ou cenas ofensivas.
Com a pulverização de conteúdo nas redes sociais, as plataformas digitais têm papel central na prevenção e remoção de deepfakes. É urgente estabelecer um regime de responsabilidade que incentive a rastreabilidade, a identificação de conteúdo sintético e a adoção de tecnologias de autenticação de vídeos.
A jurisprudência nacional ainda é escassa, mas o movimento internacional tem avançado: a Califórnia criou leis específicas para deepfakes com fins eleitorais e pornográficos; o Reino Unido e a UE caminham para regular a IA em prol da proteção da dignidade humana.
No âmbito contratual, recomendam-se cláusulas expressas sobre uso de imagem e reconstrução digital, inclusive post mortem, e registros preventivos de ativos digitais e identitários.
A era das deepfakes exige mais do que atualizações legais. Exige uma nova compreensão do que significa ser humano em uma realidade mediada por algoritmos. O direito à imagem, como expressão da dignidade e da identidade, precisa ser protegido da banalização digital.
Entre a verdade e o código, o Direito tem o dever de preservar o reconhecimento da pessoa como ela é, e não como a máquina quer que ela pareça ser.