
A União Europeia está apostando pesado na construção de fábricas de inteligência artificial para recuperar o atraso em relação aos Estados Unidos e à China no setor de IA. Com investimentos bilionários e parcerias estratégicas, o bloco europeu quer acelerar a transformação digital e fortalecer sua soberania tecnológica em um cenário global altamente competitivo.
O conceito de “fábricas de IA” — instalações dedicadas à criação e aplicação de modelos de inteligência artificial — tem ganhado força nos últimos meses. Um dos principais impulsionadores dessa tendência é a Nvidia, cuja liderança tem defendido uma nova “revolução industrial” baseada em IA. Em um evento recente em Paris, o CEO Jensen Huang anunciou parcerias com França, Itália e Reino Unido para construir centros de produção de IA geradora de receita.
A própria União Europeia descreve as fábricas de IA como um “ecossistema dinâmico”, onde poder computacional, dados de qualidade e talentos especializados convergem para o desenvolvimento de soluções avançadas. No entanto, desafios como altos custos de energia, lentidão na concessão de licenças e uma rede elétrica desatualizada ainda são obstáculos relevantes.
Henna Virkkunen, vice-presidente da Comissão Europeia para soberania tecnológica, destacou que a Europa possui 30% mais pesquisadores per capita em IA do que os EUA e cerca de 7 mil startups no setor, mas esbarra na limitação da capacidade computacional. Por isso, a UE decidiu, em conjunto com os Estados-membros, investir fortemente em infraestrutura estratégica.
Maior investimento público em IA do mundo
Até agora, a União Europeia já direcionou 10 bilhões de euros para 13 fábricas de IA e lançou um plano inicial de 20 bilhões de euros para financiar gigafábricas — estruturas ainda mais robustas e poderosas. Segundo Virkkunen, esse é o maior investimento público já feito no setor de inteligência artificial no mundo.
O bloco recebeu 76 manifestações de interesse vindas de 16 países-membros, com propostas para instalação em 60 locais diferentes. Apesar do forte interesse, Virkkunen reconhece que o sucesso dessas fábricas dependerá da entrada massiva de capital privado.
As gigafábricas são vistas como centros de processamento avançado, capazes de transformar grandes volumes de dados em aplicações práticas de IA. O analista Andre Kukhnin, do UBS, compara essas instalações a data centers com GPUs de última geração, voltadas para treinar modelos e realizar inferências, com foco especial em torná-las acessíveis a pequenas e médias empresas.
Já Martin Wilkie, do Citi, destaca que o verdadeiro diferencial está na capacidade de utilizar plenamente essa infraestrutura, conectando-a a redes de energia potentes e adaptadas para suportar a alta demanda energética.
Casos de uso e a busca por soberania dos dados
Empresas como a Telenor, da Noruega, já começaram a operar suas fábricas de IA. Em novembro do ano passado, a companhia inaugurou sua primeira instalação do tipo e vem realizando testes com uma versão local do ChatGPT, chamada BabelSpeak, voltada para casos sensíveis como a atuação em parceria com a polícia de fronteira.
Segundo Kaaren Hilsen, diretora de inovação da Telenor, a soberania de dados é essencial para o avanço da IA na Europa. “Se queremos utilizar a inteligência artificial para inovar e melhorar a eficiência, precisamos garantir que dados críticos estejam protegidos”, afirmou.
Desafios: energia e escalabilidade
Apesar do otimismo, especialistas alertam que os desafios vão além da construção física das fábricas. Bertin Martens, pesquisador do Bruegel, questiona a dependência de subsídios públicos e levanta preocupações sobre a escalabilidade dessas estruturas frente à demanda energética. Estima-se que uma gigafábrica de última geração consuma cerca de 1 gigawatt, algo comparável à demanda de uma cidade de médio porte.
A infraestrutura elétrica da Europa pode não estar pronta para essa carga adicional. Além disso, a construção de usinas de energia de mesmo porte leva muito mais tempo que as próprias fábricas, o que pode se tornar um gargalo no curto prazo.
Projeções e próximos passos
De acordo com estimativas do UBS, a capacidade total prevista das gigafábricas da UE pode atingir entre 1,5 e 2 GW, representando um aumento de até 15% na capacidade computacional da Europa. Isso seria um avanço relevante frente aos Estados Unidos, que detêm hoje cerca de um terço da capacidade global de data centers.
Com o apoio da nova parceria comercial entre UE e EUA, chips de IA desenvolvidos por empresas americanas deverão impulsionar ainda mais a infraestrutura europeia, conforme afirmou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.
Mesmo assim, Martens pondera: “Comprar chips é a parte fácil. O desafio real é torná-los viáveis economicamente e operacionais em grande escala.”
Segundo ele, a Europa provavelmente precisará começar em uma escala menor e evoluir aos poucos. “Com o tempo, podemos alcançar a capacidade de desenvolver nossos próprios modelos de IA, mas isso será uma jornada gradual.”